Como quando a gente dormia junto e o seu cotovelo se encaixava
perfeitamente na minha cintura, eu queria muito me mexer, mas não me mexia pra você
não acordar, porque você ia levantar muito cedo no dia seguinte, seus malditos horários
e todos aqueles despertadores, o do celular, o que ficava no outro canto do quarto
que te obrigava a levantar para desligá-lo, e eu abria meu olho, assim, bem
pouquinho, com cara de poucos amigos, não era de manhã, era de madrugada, e eu
levantava, me vestia, e sentava na pontinha da cama enquanto você lavava o
rosto. Vamos? Vamos. E como quando depois de um tempo eu me mexia sim, mesmo
que você tivesse que levantar muito cedo, não era cedo, era madrugada, e mesmo
que você tivesse acordado no meio da noite, não era noite, era madrugada, pra resolver
um problema do trabalho. Como você sabia quando era trabalho? Tantas vezes não me respondeu, estava dormindo, cansado, desculpa, morto, capotado, mas você sabia
quando era trabalho, e mesmo quando tinha que acordar muito cedo, de madrugada,
e já tivesse ficado acordado até muito tarde, de madrugada, você sabia quando era.
Mas eu não ligava mais, ia pro outro lado da cama, ficava sozinha mesmo que o
tempo fosse curto, porque os despertadores iam começar a tocar, desperta dores,
dores despertadas, arrependimento instantâneo de não ter ficado grudada em você. Eu já tinha transformado o meu sentimento em um pouco de receio, eu
gostava de um jeito que você não gostava, não tinha motivo e eu gostava, a sua
mão apertando o meu ombro no primeiro dia que a gente saiu, eu sentia aquela
mão no meu ombro como no primeiro dia que a gente saiu, mesmo que aquela mão não
estivesse no meu ombro, mesmo que aquela mão não estivesse em lugar nenhum.
♥
domingo, 1 de novembro de 2015
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
Pegadas
Aprendi a escrever, então comecei a escrever. Foi minha
primeira arma contra a melancolia. Dessa época veio a palavra crise. Eu entendia
que meus momentos de pensamentos melancólicos eram crises. Eu tinha várias, o
tempo todo. Crise porque era tímida, crise porque
era ansiosa, crise porque eu não entendia. Eu naturalizei a crise. Era como se
eu estivesse de acordo. Ela viria. Eu sentiria. Eu me desmancharia. Ela iria
embora. Eu me recomporia e esperaria pela próxima. Um dia, bem nova, escrevi que as
crises pisavam em latas de tinta antes de chegarem, porque elas pisavam em mim,
e isso por si só já era doído, mas ainda deixava rastros. As pisadas marcadas
pela tinta ficavam até mesmo quando não estava sendo pisada mais. Eu sentia o
peso das pisadas mesmo quando não havia mais peso em cima delas. A sensação de
sentir a sensação da pisada era tão – ou mais – assustadora que a própria pisada.
E assim eu entendi, por um tempo, o que era ter tendências melancólicas.
domingo, 12 de julho de 2015
Fragilidade
A imagem de uma boca tão bem delineada
quanto os olhos amendoados mais bonitos que já pude ver de perto. O bigode em volta
que se mexe cada vez que sorri, e sorri tanto, e volta a ficar sério, e sorri
de novo, acompanhado de um risinho desses nervosos, desses que não sabemos,
desses indecifráveis. Porque não é pra decifrar mesmo. Somos de poucas palavras
– nos tornamos de muitas respirações. A mais forte que me desconcentra, a
devagar que me arrepia, a pausada que me dá paz. Porque não é pra falar mesmo.
Quando o silêncio não incomoda é um bom sinal – somos de muitos olhares. Você comenta
sobre as cores dos prédios enquanto eu observo seus cachinhos se desfazerem
entre meus dedos. Olho mais um pouco – desvio, desvia. Você me abraça, eu me
deixo, você me aperta, eu entendo. A imagem de uma boca tão bem delineada indo
ao encontro da minha. Encaixes, graças e percepções.
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
Pés gelados e meias
Sabe aquelas noites frias em que você se encolhe debaixo das
cobertas e só depois percebe que esqueceu de colocar meias? Seus pés
estão gelados, ao mesmo tempo em que você não está ruim de um todo. Você está
aquecido, só os pés estão gelados. Depois de um tempo, os pés gelados parecem não
te deixar mais confortável. O momento da consciência do desconforto até a
coragem de levantar para pegar as meias é a nossa relação. Não é ruim de um
todo, mas quando você decide levantar e pegar as meias, percebe que ter pés aquecidos é melhor.
domingo, 10 de agosto de 2014
Reflexo
Aconteceu, não foi mais possível negar. Se negar, por vezes,
é o que resta, sentir tanto complica toda a situação. Os beijos, os abraços, os
apertos – esses poderiam ser negados, ignorados, numa tentativa de, talvez,
esquecê-los. Mas as sensações, sempre as sensações. Não se trata do melhor
beijo, nem do abraço mais aconchegante, nem dos olhos mais brilhantes. É o que
se sente. É daquelas coisas que Shakespeare deve ter querido dizer, porque “há
mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia”. Então te
transformo em fantasma, porque você me assombra, me faz querer fugir, me faz
querer tomar decisões do tipo: olha, isso já foi longe demais. “Não se
martirize”. Não é martírio moral. Ou é. Só que pouco. É martírio de
incompletude. Porque você não deveria chegar e me fazer repensar nos caras tão
legais e atenciosos que querem me fazer feliz. Esses caras que me compreendem,
mas nunca vão me entender. Consegue ver? A diferença entre entender e compreender.
Veja só, deixo meu copo de cerveja esquentar para pensar nessas frágeis diferenças
e nesses clichês que fazem parte do meu ser. Compreender, entender. “Vou
dormir, preciso pensar em tudo o que aconteceu aqui”. Não tem o que pensar. A
vida é repleta de polaridades, só que nem todas somam. Consegue entender o que
é polaridade? Aquilo que atrai, que faz querer estar perto. Mas somar, não
soma. Às vezes subtrai, em outras divide... “Estou te poupando de muitas
lágrimas e sofrimentos”. Para um conto, poderia reconstituir a noite e pensar
num desfecho. Para uma crônica, poderia pensar sobre as situações inevitáveis
da vida. Para um romance, me esforçaria para estender diversas situações que,
provavelmente, não teriam um final feliz. O poema eu deixo pra você. Fica assim:
eu com minhas linhas tortas e vulgares, você com seus versos livres e encantadores.
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Espelho
Eu não fiquei com você. Nem vi
você me olhando de canto de olho durante uma festa. Eu não deixei você pegar
minha mão. Nem deixei você me segurar nos seus braços. Eu não conversei com
você. Muito menos permiti que você ficasse grudado em mim na pista de dança. Eu
não procurei o seu olhar. Nem deixei você falar no meu ouvido qualquer
comentário sobre alguma pessoa. Eu não fui lá fora com você. Nem deixei que
você queimasse meu vestido com a ponta de um cigarro. Eu não falei sobre mim.
Nem ouvi os seus galanteios ou qualquer coisa sobre sua vida. Eu não te olhei
nos olhos. Nem deixei que você olhasse nos meus. Eu não aceitei nenhum pedido. Nem
ouvi qualquer elogio. Eu não ri de nenhuma piada. Muito menos borrei meu batom.
Eu não te beijei. Nem me deixei ser beijada. Eu não te abracei. Nem me deixei
ser abraçada. Eu não me rendi. Nem deixei que você se rendesse. Eu realmente não
deixei que você me cheirasse e me apertasse. Eu nem sei que você existe. Nada
aconteceu.
quinta-feira, 31 de julho de 2014
Aquilo que passa
Ele senta do meu lado e eu penso que deveria ter feito as
unhas, porque, assim, de cabeça baixa, restam poucos lugares para ele repousar
os olhos – minha mão e meu aparelho tecnológico cheio de músicas. Toda vez que
o ônibus mexe demais, ele não se importa que meus ombros, tão pesados naquele
dia, encoste nos dele. O cheiro do meu xampu de frutas vermelhas chega aos seus
sentidos por meio dos ventos daquele dia de inverno com sol. Quase pude ver um
sorriso toda vez que inclinava um pouco o rosto e o dele virava, me deixando
como campo de visão uma barba mal feita, que dava vontade de arrumar. Meu quadril,
numa tentativa de se ajeitar no banco pequeno, bate numa mão inquieta. Ele levanta.
Eu ainda permaneço sem conseguir olhá-lo. Mas ele olha. Para trás. Levanto o
olhar, mas não a cabeça. Ele sorri. Desce. Procura meu olhar mesmo de longe. Eu
não olho. Para olhar precisaria olhar para trás. Eu quase nunca olho para
trás.
sexta-feira, 25 de julho de 2014
Sobre sentir: não se desculpem
Se formos viver tudo que aparece
na nossa frente, acabaríamos caindo num vácuo, num vazio sem fim. Por isso
trata-se de escolha. “Escolhi estar com você”. Escolhi... Mesmo não sabendo
como serão as próximas horas, quem dirá o próximo dia, a próxima semana. E não
me peça para dizer que não estou envolvida. Sou humana. Tenho sentimentos. Eu
me envolvo. Depois de alguns beijos e umas noites mal dormidas, porém
aconchegantes. Porque eu sou humana e a impressão que dá é que, por vezes, há
que se pedir desculpa por se envolver. “Desculpa, me perdoa por esse deslize –
me envolvi”. Não façamos isso. Não escondamos tantos nossos sentimentos.
Demonstremos, sim, o quanto estamos interessados! Não confundamos liberdade com
insensibilidade. Ninguém precisa se casar depois de uns beijos, ninguém precisa
se prender – sem querer – depois de alguns encontros. Mas não caiam na tristeza
de viver histórias individuais o bastante para deixá-los, enfim e infelizmente,
menos humanos, menos cheios, menos inspirados. Decidam! Optem pelos caminhos
que te façam transbordar mais amor e alegria e, quando conseguirem isso, tratem
de compartilhar. Relacionar-se tem que ter qualquer coisa disso: de partilha e
de emoção. E de amor, por que não? Amor no sentido mais amplo. Não se prendam a
tantas construções sociais. Falaram, sim, para você, que alguém fica mais
interessado quando você ignora, quando você deixa de correr atrás,
quando você é difícil. Bobeira! Pessoas de verdade – e aqui não consigo fugir
desse clichê mal explicado com um pouquinho de juízo de valor – querem apenas
se elevar. E uma relação tem que trazer isso – mudança. Que dói, melhora, fortifica e, sobretudo, humaniza.
sexta-feira, 13 de junho de 2014
Se as estrelas não brilham da primeira vez
Estava
começando a aceitar que boa parte das coisas são ilógicas, mas não podia negar:
adorava quando tudo fazia sentido. Depois de abrir os olhos pausadamente, como que
com receio de abri-los e lembrar-se de todos os acontecimentos da noite
anterior, apalpou o pescoço para certificar-se que seu colar ainda estava no
lugar que deveria estar. Levava no peito um pingente em formato de chave e
explicava o sentido daquilo raramente. Abriu a janela, sentiu cheiro de chuva e
melancolia: o dia estava lilás.
Pegou
uma xícara de chá gelado e pôs-se a pensar. Teve a impressão de que a vida é um
eterno comparar e ponderou: talvez por isso a ignorância seja uma benção. Essa
frase vinha sendo recorrente na sua semana. Se não conhece, não sente falta, se
não conhece o melhor, não se importa em ter o pior. Considerações bobas, fáceis
e até infantis. Pensou que continuava testando e não se importava tanto assim.
Mas todos sabem que quem realmente não se importa, nem pensa na possibilidade
de dizer que não se importa. Sentiu uma angústia da vida. Um velho sentimento
que conhecia bem. Ela, que nem tinha tanto conhecimento, já queria muito. Como
é que seria? Depois sentiu que outra sensação estava chegando. Arrumou o cabelo,
despenteando seus cachos desgrenhados pelo sono da manhã, e logo ela apareceu:
a culpa pela insatisfação crônica, seguida de um sentimento confuso, de pensar
que, talvez, devesse diminuir seu senso crítico em relação à vida.
O equilíbrio que havia começado a buscar – por diversos meios e de diversas formas – a fez entender cedo que não precisa viver, no sentido de vivenciar, para saber. A experiência dos outros é um prato cheio pra quem apenas se propõe a ajudar quem quebrou a cara – e preserva a sua. Mas tem o outro lado, ela precisava viver, e viver é sentir, e sentir tem que ser qualquer coisa além de desânimo. Como quando o palhaço distrai a platéia para que arrumem o palco. É escolha. Cada um decide para onde vai olhar: para o espetáculo ou para a arrumação. Bethania estava sempre olhando a arrumação, enquanto de plano de fundo ouvia as gargalhadas alheias de uma alegria momentânea, que não era sua.
Nessa onda de epifanias, lembrou-se do que se
esforçava para esquecer. Foi num domingo e já estava na hora de sair. Vestiu
seu fone de ouvido – e nesse momento achava que estava invisível – e avistou ao
longe o que seria sua alegria momentânea e permanente, mas não eterna. Olhou
como se não pudesse ser olhada e, mais que olhares se cruzando, as íris de
ambos se fundiram. O mel no verde e uma única pupila. Que se dilatou. Antes
mesmo de se aproximarem, pensou como seria quando chorassem. As lágrimas seriam
divididas ou multiplicadas? Pouco sabia.
E nesse caso não pensou que não se importava. E foi assim que seu pingente
passou um bom tempo no bolso daquele rapaz.
Mania humana de por a culpa em um acontecimento que – parece – desencadeia vários outros, negando qualquer força outra que não seja explicada pelas leis mundanas, ela quase amaldiçoava aquele dia. Acabou o chá e começou a rotina diária de lembranças. Fundir outras partes do corpo com outros rapazes não deveria ser tão difícil. A ignorância é uma benção. Quem não conhece o melhor, não se importa em ter o pior. Bethania sabia. Nem tinha tanto conhecimento e já queria muito. Como é que seria? Cada parte do seu corpo ouvia os sussurros de cada parte de outro corpo. Aquele corpo. Aquela fusão.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
A ciência explica
Muito se diz sobre a minha vida. Sou conhecida como a bela
adormecida. O bela eu aceito de bom grado, já o adormecida não está entre os
meus adjetivos preferidos. Conta-se sobre a minha história: “era uma vez uma
rainha e um rei muito tristes porque não tinham filhos. Até que um dia nasceu
uma linda princesinha que eles chamaram de Aurora”. Pois bem, chamem-me de
Aurora, meu nome registrado, e não dessa alcunha popular que não teve o meu
consentimento. Dizem que no dia do meu batizado, vieram três fadas madrinhas,
Fauna, Flora e Primavera. Para o bem da verdade, elas são três moças muito
queridas, mas fadas madrinhas?? Contam por ai que uma me deu uma grande beleza
e a outra um maravilhoso dom para o canto, mas, por Deus, quem me deu isso
foram os genes dos meus pais! A ciência explica. Convenhamos, fada madrinha que
é fada madrinha, transforma abóbora em carruagem. Mas ainda tem um absurdo
maior: a tal da bruxa. A Malévola não passa de uma moça ressentida por achar
que não foi convidada para uma festa. Mas a parte que ninguém mostra é que ela
foi convidada, sim! O convite apenas não chegou por motivos de que o correio do
reino é muito incompetente. Malditos serviços públicos! Extraviaram a carta da
coitada que, em um surto de raiva, chegou no meio da festa como intrusa – sendo
que seu nome estava na lista – e lançou a mim algumas injúrias. O jornal do
reino, sensacionalista e sem pudores, publicou: “Bruxa Malévola lança feitiço
em inocente princesa”. Como era de se esperar, a repercussão foi grande. Para
continuar com a polêmica, inventavam a cada dia uma nova manchete: “Para
alegria de todos, a fada madrinha Primavera suaviza feitiço”. E a notícia
seguia: “Amenizando o feitiço da bruxa má, que dizia que no dia em que completasse
16 anos, Aurora espetaria o dedo no fuso de uma roca de fiar e morreria, fada
madrinha diz que a querida princesa não morrerá, apenas entrará num sono
profundo, do qual só vai despertar com um beijo de amor sincero”. E, para
comentar isso, faltam-me até palavras. É cada situação que me colocam! Infeliz
ou felizmente, preciso tirar toda a magia que essa história inventada possui:
não existe nenhum feitiço, nem bruxas e fadas madrinhas. Muito menos príncipe
ou amor sincero. Eu, Aurora, a querida princesa, a tal da bela adormecida,
durmo muito, sim, e por períodos longos, e a explicação é simples: tenho
distúrbios de sono. Sou narcoléptica!!
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